As virgens suicidas: se não há espaço para a inocência na América moderna

As virgens suicidas: se não há espaço para a inocência na América moderna

No âmbito dos nossos artigos que releem os primeiros tempos dos grandes autores, abordamos uma das estreias mais complexas, extremas e fascinantes do final do milénio, nomeadamente As Virgens Suicidas, de Sofia Coppola. Na verdade, é uma estreia muito complicada porque é uma adaptação cinematográfica de um texto com muitas camadas como o romance As Virgens Suicidas de Jeffrey Eugenides, que por sua vez utilizou um acontecimento real para falar da América de Ford, do boom económico, do primeiro consequências do ideal consumista, da luta entre o pudor e a investigação da sexualidade, da sacralidade da família e da ritualidade pagã da adolescência e, sobretudo, da fragilidade da inocência. Um livro, enfim, cheio de ideias e difícil de gerir, principalmente para uma estreante, que no entanto demonstrou uma certa afinidade com alguns temas da sua curta anterior, Lick the star (pode encontrá-lo aqui se tiver interesse).

Uma foto promocional de Kirsten Dunst, Hanna Hall, Leslie Hayman, Chelse Swain e AJ Cook para 'The Virgin Suicides'

Uma foto promocional de Kirsten Dunst, Hanna Hall, Leslie Hayman, Chelse Swain e AJ Cook para ‘The Virgin Suicides’

Havia muita literatura sobre o motivo desta escolha de Sofia Coppola na época, e entre os motivos mais populares estava o suspeito duplo desejo de tentar uma emancipação extrema da figura paterna, afirmando também a dificuldade através do precisa fazer um gesto extremo. Uma espécie de suicídio cinematográfico que poderia ressoar como um alerta, não só pelo conteúdo, mas também pelas escolhas linguísticas, que também beiram a imprudência.

Uma imagem de Kirsten Dunst, Hanna Hall, Leslie Hayman, Chelse Swain e AJ Cook para 'The Virgin Suicides'

Uma imagem de Kirsten Dunst, Hanna Hall, Leslie Hayman, Chelse Swain e AJ Cook para ‘The Virgin Suicides’

E, em vez disso, As Virgens Suicidas, apresentada na Quinzena dos Realizadores da 52ª edição do Festival de Cannes, revelou-se uma operação vencedora, não tanto nas bilheteiras, onde obteve um sucesso moderado, mas para a crítica e para a continuação de Coppola, que juntou as suas reflexões às ideias do texto, construindo em torno delas a sua gramática artística de uma forma tão fascinante que nos leva a considerar como a sua poética cinematográfica em geral encontrou precisamente a sua expressão mais extrema (e talvez bem sucedida) no filme de 1999.

Uma declaração de intenções

No início de As Virgens Suicidas há uma voz masculina que anuncia ao espectador que a história que vai ver já tem cerca de vinte anos e que gira em torno do triste destino das cinco irmãs Lisboa, que irão morrer por suicídio no mesmo ano. Um incipit que soa como uma declaração de intenções do filme e, por extensão, da visão cinematográfica de Sofia Coppola. A razão? Diz-nos como o ponto de vista narrativo será externo ao dos protagonistas e do seu mundo semelhante e, de alguma forma, alerta-nos para o pensamento pouco convencional de uma realizadora que inicia o seu primeiro filme já revelando a sua construção e final.

Uma foto das irmãs Lisbon com Kirsten Dunst para o filme 'As Virgens Suicidas'

Uma foto das irmãs Lisbon com Kirsten Dunst para o filme ‘As Virgens Suicidas’

Josh Hartnett e Kirsten Dunst como Trip Fontaine e Lux Lisboa em ‘As Virgens Suicidas’

Josh Hartnett e Kirsten Dunst como Trip Fontaine e Lux Lisboa em ‘As Virgens Suicidas’

Além destes, obviamente há a indicação que vem dos protagonistas: cinco adolescentes que encontrarão a morte no momento de transição para o mundo adulto. A primeira será a mais nova, que conseguirá o seu objectivo na segunda tentativa, enquanto as outras decidirão juntas o terrível gesto, exasperadas por uma situação familiar insustentável devido à crescente severidade materna (tornada possível pela passividade paterna). ) e a incapacidade de se relacionarem com um mundo chauvinista que os deseja apenas na medida em que possam tornar-se objetos sexuais.

Um mundo que rejeita a inocência

Lux (Kirsten Dunst) e Trip (Josh Hartnett) no baile de ‘As Virgens Suicidas’

Lux (Kirsten Dunst) e Trip (Josh Hartnett) no baile de ‘As Virgens Suicidas’

A fragilidade típica da inocência, amplificada no momento de transição para a adolescência, etapa fundamental na construção da autoimagem, é contada através de uma história que fala dos perigos da idealização. Aquela que os miúdos dos subúrbios de Detroit têm pelas irmãs Lisboa e que a prisão levou as irmãs Lisboa a terem pela realidade provinciana dos subúrbios de Detroit. Idealizar significa afastar-se de um conhecimento real de si e dos outros, levando à construção de prisões ditadas por regras sociais e culturais que levam à rigidez e à opressão.

Uma visão que conduz à morte e não à vida e, portanto, cinematográficamente reproduzível de uma forma matizada, onírica, rarefeita, mas nunca completamente focada, concentrada ou útil. O estilo de direção de Sofia Coppola é mostrado aqui pela primeira vez como pontual na construção desse ponto de vista. Neste caso com o objectivo de dar ao público um sentido persuasivo e abafado, como que sublimado por uma memória cheia de desejo, de modo a fascinar e ao mesmo tempo complicar uma percepção real. O estado emocional das meninas escapa ao espectador e também ao mundo circundante, que as deseja a ponto de aprisioná-las, mas nunca compreende seus sofrimentos, necessidades e inclinações, nem mesmo a partir de suas conversas, muitas vezes vazias e repetitivas. O filme permite apenas um momento de fofoca lúdica para dar uma visão infantil e, ca va sans dire, limitada do mundo dos jovens.

As irmãs Lisboa: Kirsten Dunst, Leslie Hayman, Chelse Swain e AJ Cook protegem a árvore em cena do filme 'As Virgens Suicidas'

As irmãs Lisboa: Kirsten Dunst, Leslie Hayman, Chelse Swain e AJ Cook protegem a árvore em cena do filme ‘As Virgens Suicidas’

O destino trágico das irmãs Lisbon, apanhadas entre a visão consumista dos seus pares e a visão negacionista da sua família, torna-se assim uma metáfora para a impossibilidade do mundo (especificamente da América moderna) encontrar um lugar para elas. O mesmo que os olmos, que numa cena chave de As Virgens Suicidas são colocados como único elemento acessível aos protagonistas, saudáveis ​​portadores de um mal que os impede de viver e ameaça a capacidade dos outros de crescerem numa sociedade em que a inocência não é esperada e a opressão é a regra. Este é talvez o tema arquetípico fundamental do cinema de Sofia Coppola, que ela trará diversas vezes ao ecrã através do uso constante do simbolismo e das metáforas visuais, continuando a questionar-se e a questionar um possível remédio.